O ponto de mutação
No que diz respeito à questão da Segurança Pública, talvez fosse interessante concordar com o desespero da maioria e buscar outras plagas para viver, mas teimosamente prefiro ousar propor solução tão próxima de todos nós, que me assusta saber o porquê não é aceita e muito menos adotada.
O susto está em observar porque o Código de Processo Penal, adotado por nós em 1941, portanto com mais de 70 anos de vigência, ainda não é devidamente obedecido, ou porque suas medidas, com a finalidade de promover o controle da prática do crime, ainda não conseguiu seu intento. É claro que de todos os crimes praticados, nossa repartição estatal responsável com exclusividade pela sua persecução, ainda não tenha tido tempo de se organizar ou se aperfeiçoar para cumprir seu mister. É bem verdade também que esperar que todos os crimes praticados no país sejam esclarecidos seria impensável e poderiam representar um tal número de encarcerados que nenhuma sociedade do mundo moderno poderia aturar. Do mesmo modo, eleger todos os crimes como hediondos também não será a solução. Descobrir o que fazer para mudar o quadro atual é o maior desafio da sociedade em que vivemos.
Fica a dúvida, temos mais crimes porque os criminosos nunca, ou muito esporadicamente, são presos ou há de fato um comportamento especialmente diferente dos brasileiros na aceitação de viver com o crime, de entendê-lo como coisa normal, a ponto de não se importar com o que ocorre de repreensível, desde as hostes do governo federal, até o criminoso de rua, aquele apelidado “pé de chinelo”?
As manifestações de rua e o repúdio às mortes mostram o contrário. Não são meras figuras midiáticas. Ou mesmo apenas homenagens simbólicas para nos desobrigarmos da dívida social, religiosa ou familiar com os nossos conhecidos que inocentemente são mortos. Ainda nos resta sentimento, sofremos com a desgraça na vida alheia e ainda somos capazes de nos indignarmos. No entanto, sabemos que cada vez mais nos prendemos em nossas casas, para evitar sermos vitimados pelo descaso das autoridades de plantão.
A persecução criminal, tal como a conhecemos desde os anos de 1190 na Europa, quando da criação da Marechausset, hoje Gendarmeria Francesa, é atribuição fundamental do Estado moderno e garantia de igualdade de direitos entre todos os cidadãos, mais fracos ou mais fortes. Foi por intermédio dela que este tipo de organização predominou na Europa, berço da cultura brasileira. Até os dias atuais a Gendarmerie mantém seu padrão, é militar, porque interessa ao povo francês seu modelo de disciplina e hierarquia e goza de aprovação de mais de 83% daquele povo.
Acontece que lá, como em qualquer lugar do mundo, menos no Brasil, as polícias mantêm este tipo de hierarquia e disciplina porque se exigem destas organizações resultados reais sobre a incidência da prática de crime, sua diminuição e identificação dos criminosos, sem o que, para todas as sociedades observadas, não há a chamada universalidade da presença do estado em garantir a segurança de todos, nem credibilidade para ver aqueles que transgridam a lei pagarem pelos seus atos e representarem escola de exemplos a não serem seguidos pelos que, imaturos em convivência social, ainda admitam a transgressão da lei como opção de vida.
Não se iludam, não há como fazer persecução ao crime ou aos criminosos comuns, muito menos aos contumazes, se não se investigam os crimes e, no modelo brasileiro, não se faz investigação se não se instaura o Inquérito Policial. Ocorre que o índice de instauração de Inquéritos Policiais pela nossa Polícia Judiciária após cometimento de crimes é de no máximo 8%. Imaginem ainda que temos 2% de crimes de autoria desconhecida esclarecidos em São Paulo, e com sucesso na ordem de 0,8 % destes crimes com condenação pelo Poder Judiciário. Estes dados chegam a ser estarrecedores, porque se estamos neste nível de resultados do nosso sistema de persecução porque as Polícias não se falam, embora sejam suas obrigações, como se esperar que os crimes hediondos, ou aqueles que assustam de fato a sociedade, sejam prevenidos?
Mais ainda e não por acaso, os criminosos nem sempre são novos para o sistema criminal. A prática de crimes hediondos não ocorre somente uma vez para cada criminoso conhecido, muito ao contrário, conhece-se sua contumácia. Resta-nos perguntar: será que, por não terem persecução, repetidamente não passam a praticar mais os mesmos crimes? Ou ainda, será que não se especializam e aprendem a adotar meios para praticarem com mais voracidade, requinte e violência os crimes? Neste nível de progressão o seu desprezo com o sentimento das vítimas aumenta ou diminui?
Do mesmo modo, a polícia dita investigativa não enfrenta este tipo de facínoras no seu trabalho diário, nem vê o criminoso violento como perigo à sua função, do que decorre a desobrigação em passar o que investiga para quem previne.
Algo precisa ser feito e não é de hoje. A polícia que está na rua é que com mais rigor é alvo dos criminosos, nos enfrentamentos com armas de muito maior poder destrutivo que os dela e, como não investiga, é sempre pega de surpresa, como são todos os cidadãos, nos crimes praticados.
Poderíamos ficar dias apontando dúvidas e questionamentos do sistema atual, mas já se passaram mais de 70 anos, como acima dito, e nossa sociedade divergiu do mundo todo quanto à adoção de modelo de persecução penal. Não seria momento de se permitir, como muitas propostas que estão no Congresso Nacional, que finalmente se desse vez ao interesse social e se adotasse o modelo diferente do atual e igual ao mundo todo, onde cada polícia, que primeiro atendesse a ocorrência criminal, ficasse obrigada a esclarecer a autoria do crime para encaminhar ao Ministério Público, entidade responsável em promover a denúncia? Ou até quando a sociedade brasileira vai tentar trabalhar com a suspeita e experiência do Policial em adivinhar qual dos cidadãos à sua frente é o possível criminoso? Se a prevenção é o objetivo, porque se esconde tanto o rol dos criminosos? Como é possível que 92 % dos crimes praticados, conhecidos pela Polícia Militar, não sejam objeto de análise ou Inquérito se assim é exigido pela lei?
O ponto de mutação está na adoção do Ciclo Completo de Polícia, porque confeccionar boletins de ocorrências apenas para desencargo de consciência e colocá-los em pasta AZ, para posteriores providências, absolutamente não representam interesse para sociedade, pois que assim fazendo, quando muito significam apenas ônus financeiro para o Estado e desastre total para a sociedade. As rainhas das provas, aquelas que vemos em filme colhidas pelas perícias, as provas materiais, se esvaem quando a investigação nem se importa em ir a locais de crime. Ora, mas o Estado vai a todas as ocorrências com as PMs...
Ainda estamos na situação de esperar que as causas que motivam esta aberração de 92% de crimes sem Inquérito, sejam meramente circunstanciais e não propositais, pois nenhuma sociedade sobrevive com tal influxo de inobservância da legislação penal, sem sofrer consequências absolutamente críticas à normalidade de sua existência. Estamos à beira desta anomia ou a vivemos e não demos a devida conta.
Flammarion Ruiz
Coronel PM Assessor Institucional da Associação de Oficiais da Polícia Militar de São Paulo.