Como as gestões municipais podem, de fato, contribuir com a segurança pública?
Em um Brasil que tem 10 das 50 cidades mais violentas do mundo — de acordo com a organização não-governamental (ONG) Conselho Cidadão para a Segurança Pública e a Justiça Penal, com dados de 2023 —, a criminalidade é tema recorrente em ano eleitoral, mesmo que a disputa seja pela prefeitura e por uma cadeira de vereador.
De acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2024, elaborado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública com os dados de 2023, houve 46.328 mortes violentas intencionais no Brasil no ano passado. A violência contra a mulher aumentou, assim como a contra crianças e adolescentes. O número de estupros chegou a 83.988. A quantidade de roubos e furtos de celular também é surpreendente: 937.294.
É nesse contexto de insegurança que, numa tentativa de atender às demandas da população, os candidatos ao paço municipal elaboram propostas que vão desde o armamento e a valorização das guardas municipais até o aumento da iluminação pública — passando por promessas que não competem a eles, em alguns casos. Promessas que a população pode começar a lembrar para cobrar os prefeitos eleitos para os próximos quatro anos.
A reportagem da Gazeta do Povo reuniu dados e análises de especialistas da área para explicar o que de fato pode — e deve — ser colocado em prática pelos prefeitos eleitos que assumirão os mandatos em janeiro, de maneira a contribuir para a diminuição da criminalidade dos municípios.
Investimento municipal em segurança pública cresceu no último ano
De acordo com dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, os municípios têm ampliado as despesas com segurança pública em proporção superior ao verificado nos estados e na União. Entre 2011 e 2023, o crescimento foi de 89,65%, ainda que as prefeituras não contem com recursos específicos para a área.
Esse crescimento fez com que as cidades, que eram responsáveis por 5,6% dos gastos da área em 2011, respondessem por 8% do financiamento em 2023. "Estes valores têm sido utilizados para o financiamento de guardas municipais, para apoiar as polícias estaduais e para o desenvolvimento de projetos de prevenção", diz o estudo.
Ainda de acordo com o relatório, a participação dos municípios em ações de segurança pública disparou nas últimas duas décadas. "Seja pelo financiamento de projetos de prevenção, no apoio às polícias estaduais ou com a gestão de Guardas Civis, o fato é que as prefeituras compreenderam o papel que possuem na construção das políticas de segurança pública", aponta o anuário.
O papel das guardas municipais
A Constituição Federal estabelece que a segurança do país é uma competência compartilhada entre a União, os estados e os municípios, tendo cada qual suas atribuições e envolvendo diferentes tipos de dispositivos públicos e de efetivo que atua na área. A União coordena e financia as políticas nacionais de segurança pública e é responsável pelas polícias Federal e Rodoviária, além de comandar o Ministério da Justiça e da Defesa. As polícias Militar e Civil, por sua vez, são responsabilidade dos governadores.
Já os municípios não têm polícias próprias, e sim a Guarda Municipal ou Guarda Civil, cuja atribuição primária é proteger bens, serviços e equipamentos da prefeitura, podendo também atuar na proteção da população, fazendo a patrulha de escolas, praças e ruas. Em algumas cidades, os guardas também fazem encaminhamento de suspeitos à delegacia e participam de operações policiais.
A Guarda Municipal é um dos pontos centrais da discussão sobre investimento em segurança pública pelos municípios. De acordo com o "Raio-x das forças de segurança pública", também elaborado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o número de cidades com Guarda Municipal aumentou 36%, chegando a um total de 1.467 corporações.
O estudo estima que no Brasil haja um efetivo de 95.175 guardas municipais, número inferior apenas ao de policiais militares e de policiais civis. O Rio de Janeiro é o estado com a maior incidência de municípios com Guarda Municipal: 90%; o Acre, por outro lado, não tinha uma única Guarda Municipal instituída em 2023.
Além disso, a maioria das capitais brasileiras armaram o efetivo de guardas municipais de maneira parcial ou completa. São pelo menos 20 dentre as 26 capitais. Entre elas estão São Paulo, Rio de Janeiro, Curitiba, Belo Horizonte, Salvador, Fortaleza e Porto Alegre.
Estado do Acre vai na contramão de tendência nacional e não investe em Guarda Municipal.
As guardas atuam em conjunto com as polícias estaduais e frequentemente são usadas para patrulhamento preventivo, monitoramento de áreas públicas e apoio à segurança em eventos. A aprovação da Lei 13.022/2014 (Estatuto Geral das Guardas Municipais) regulamentou o uso de armas de fogo pela GM em cidades com mais de 50 mil habitantes. Após essa regulamentação em 2014, as guardas municipais foram integradas ao Sistema Único de Segurança Pública em 2018.
Recentemente, o Supremo Tribunal Federal (STF) julgou a ADPF (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental) 995 e reconheceu as guardas municipais como órgãos de segurança pública. Em dezembro de 2023, foi publicado o Decreto 11.841, que regulamentou trechos da Lei nº 13.022/14 para dispor sobre a cooperação das guardas municipais com os órgãos de segurança pública da União, dos Estados e do Distrito Federal.
Investimento em GM não pode sobrecarregar orçamento municipal
Para o professor da Uniter Gerson Luiz Buczenko, bacharel em Segurança Pública, a atuação efetiva da GM deve ser um dos principais braços do prefeito nas políticas voltadas para o combate ao crime. "A Guarda Municipal é a segurança pública da cidade. Uma vez que o município tem a GM, ela tem que estar disponível, ser facilmente localizada e acionada pela população, seja urbana ou rural", defende.
Buczenko diz que essa atuação deve ser integrada com as forças policiais para que haja coordenação das ações. Além disso, ele destaca que o próximo gestor não pode deixar de investir em melhorias básicas de infraestrutura das cidades, como iluminação, sinalização, acessibilidade e até coleta de lixo. "Tudo isso se conecta com a segurança pública como um todo", diz.
"Se as Guardas Municipais realmente fizerem a segurança de todos os próprios públicos, já é uma contribuição muito grande para a segurança pública. Vejamos lá, os postos de saúde, as escolas, as praças, os prédios das prefeituras: se estiverem realmente bem guarnecidos pela guarda, é um avanço muito grande. Eu ouso dizer que Guarda Municipal nenhuma consegue fazer todo esse serviço", opina ele.
O coronel pondera que a Guarda Municipal "não precisa competir com a Polícia Militar", pois há muito a ser feito na área. "A segurança pública é muito grande, tem serviço para todo o mundo e, infelizmente, está faltando gente para fazer o serviço. Então, a gente tem que organizar melhor para que não haja nenhum tipo de retrabalho e, principalmente, essa competição, que acaba ocorrendo naqueles nichos da segurança que tem um foco maior", continua.
Apesar de reconhecer que não há efetivo suficiente para fazer todo o trabalho, Breunig avalia que simplesmente aumentar o efetivo não resolve a situação. "Aumentar a quantidade de agentes da Guarda Municipal, lógico, aumenta a despesa pública. Então, o município vai despender dinheiro público na área da segurança pública, e possivelmente vai ter menos dinheiro para aquelas áreas que realmente são incumbentes do município, como a educação primária, a iluminação de praças, o arruamento, a infraestrutura do município, que contribuem muito com a segurança também. Não adianta só investir em guarda", defende.
Deveres básicos do município contribuem com a segurança
Investimento em iluminação pública, limpeza das ruas, manutenção das praças, educação no trânsito, aumento das vagas em creches e escolas e aprimoramento no atendimento à saúde contribuem com a segurança pública e são desenvolvimentos que deveriam ser prioritários aos prefeitos, conforme a análise dos especialistas consultados pela reportagem da Gazeta do Povo.
"As prefeituras podem investir dando uma boa educação para a população, mas também algo mais palpável, prático e mais visto, como a iluminação pública e a roçada de mato, deixando as praças e os próprios públicos bem conservados - isso ajuda muito na segurança pública. O marginal, principalmente o usuário de drogas e o traficante, prefere um local sujo e mal iluminado, onde a população de bem não esteja frequentando. Então, se você pega uma praça e deixa ela limpa, bem conservada, iluminada e a população a utilize bastante, dificilmente o traficante vai se estabelecer ali. Compete ao poder público manter esses ambientes bem asseados", defende o coronel Alex Erno Breunig.
Segundo dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, a melhoria da iluminação pública está ligada à diminuição de até 20% dos crimes em áreas urbanas. Breunig também defende o uso das câmeras de segurança, mas faz uma ponderação: "O que nós vemos na prática, muitas vezes, é que as prefeituras investem nessa segurança pública, principalmente em câmeras, mas acabam não compartilhando isso como deveriam com as polícias Militar e Civil, e criam entraves para o acesso irrestrito a essas câmeras por outros órgãos de segurança".
Sérgio Leonardo Gomes, presidente do Conselho de Segurança de Cascavel (PR), ressalta que, muitas vezes, os prefeitos querem resolver o assunto "como se fosse algo isolado, desprendido das demais prioridades ou dos demais setores" do município. "A administração pública deixa a sociedade numa espécie de abandono e só vai lá depois que o crime aconteceu. Se a prefeitura fizesse a parte dela, muita coisa diminuiria", afirma.
Ele dá como exemplo as brigas que acontecem em bares ou no trânsito, que podem se agravar e acabar em mortes por omissão do poder público em fazer sua parte na fiscalização. "Investir em fiscalização não aparece tanto. Mais fiscalização de alvarás, de meio ambiente, da vigilância sanitária, às vezes isso causa aos prefeitos um aumento da rejeição por parte dos empresários e eles não querem 'se queimar', mas isso é essencial para o bom funcionamento do município", defende.
O professor Gerson Luiz Buczenko concorda: "Os municípios devem fiscalizar o que acontece nas cidades, desde os logradouros públicos até o comércio que fornece alimentação, bares, lanchonetes e toda a gestão pública, pois é nesses lugares que os crimes acontecem".
Eles defendem que o principal papel da prefeitura é investir em educação de qualidade e destacam o reforço que as escolas em tempo integral dão na segurança, por afastar as crianças mais vulneráveis das ruas e do aliciamento de traficantes. Sérgio Leonardo Gomes diz que a iniciativa é "excelente", embora seja cara aos cofres públicos.
"O valor investido tem seu retorno, não a curto prazo, mas a médio e longo prazo, porque esse ensino integral, além de tirar essas crianças das ruas, contribui para a formação intelectual e de princípios, de ética, de moral, de caráter", afirma.
Eles também defendem a ênfase em políticas antidrogas por parte da prefeitura como forma de prevenção de crimes. "Isso precisa ser feito nas escolas, em todas as ações sociais, de uma maneira muito mais efetiva, porque o tráfico está ali aliciando todos os dias, e a administração pública muitas vezes deixa os traficantes terem acesso a esses adolescentes nas ruas, nos bares, em eventos onde isso é comum", afirma Gomes.
O coronel da reserva Alex Erno Breunig complementa: "O uso de drogas, que leva ao tráfico, já que não existiria traficante sem usuário, é a maior chaga da segurança pública, da área social e da saúde. As despesas públicas são extremamente impactadas pelo uso de drogas. E para diminuir a quantidade de usuários, o grande investimento é em educação. Isso vai lá na criança, para ensiná-las sobre o efeito nocivo das drogas e para se defenderem da investida dos traficantes".
Buczenko também destaca o papel da participação popular na construção de cidades mais seguras. "O futuro gestor precisa ouvir a população, oportunizar canais de denúncia, momentos em que a população fale com a prefeitura", afirma.
O que mais funciona para reduzir roubos e homicídios
Um estudo do Instituto Cidade Segura, organização da sociedade civil que tem por objetivo difundir uma concepção de segurança pública e prevenção à violência baseada em evidências, publicado em 2021, mostra iniciativas estatais elencadas como fatores contribuintes para a diminuição de roubos e homicídios no Brasil.
A revisão sistemática, elaborada pelo diretor executivo do Instituto, Alberto Kopittke, foi publicada na Revista de Administração Pública da Fundação Getúlio Vargas. Ela indicou que pelo menos sete tipos de programas possuem fortes evidências científicas de que funcionam para reduzir os homicídios e outros oito são promissores. Destes, uma parte são iniciativas dos governos estaduais ou da União, mas alguns são atribuições dos municípios. São eles:
- Restrição do horário de venda de bebida alcoólica, desde que haja fiscalização efetiva;
- Criação e investimento nas Guardas Municipais;
- Criação de uma secretaria municipal de segurança;
- Disque-denúncia;
- Abertura de escolas aos fins de semana;
- Iluminação pública.
A tese defende que, apesar de o Brasil ser considerado como estando num estágio atrasado em relação a países mundo afora, tem conhecimento acumulado sobre o que precisa ser feito, especialmente em relação a homicídios. O que faltaria, portanto, é que agentes públicos (prefeitos, governadores e presidente, além do Judiciário) trabalhem em conjunto para colocar os programas em prática.
Por Letícia Alves - Especial para a Gazeta do Povo
05/11/2024